quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Sobre cotas. Ou: quem você pensa que é?

Aos 18 anos, Valéria saiu do Rio e foi para São Paulo. Negra e pobre era das mulheres a mais velha no meio de cinco crianças. Negro e alcoólatra, seu pai não lhe facilitara a vida. Mestiça e sem instrução, sua mãe pouco podia fazer. Logo, para ela, longe de casa era melhor que perto de casa. Valéria trabalhou numa farmácia, no que em São Paulo se chama quebrada. Boa funcionária que era, recebeu convite do dono da farmácia para trabalhar numa zona nobre da cidade, Higienópolis. Aceitou o convite e passou a ganhar mais. Nunca vira tanto dinheiro, mesmo que ainda fosse pouco. Mandava todo mês para sua mãe boa quantia em dinheiro. A família agradeceu e agradece. Frente a seu esforço, a coloração de sua pele foi secundária. Valéria é a minha mãe.
Da direita pra esquerda: Elisa, Andréa, Denise, Valéria, Dilcéia e Celso. Ou: minhas tias, minha mãe, minha avó e meu tio. Todos vivos e vencedores, sem cotas.  

De volta ao Rio, minha mãe se dedicou e estudou, sendo aprovada num concurso público que pela primeira vez abrira para mulheres. De lá pra cá, se casou, teve dois filhos, se separou e hoje se coloca, por mais impressionante que seja, no tal 3% de brasileiros privilegiados. Absolutamente tudo fruto do seu esforço e mérito. 

Se na vida minha irmã e eu fracassarmos não terá sido culpa de nossa mãe. Menos ainda de nossa cor ou raça, como preferem alguns. Minha mãe, minha irmã e eu não somos a regra e nem podemos ser tomados como padrão dos negros, pardos e mestiços do Brasil. Mas contamos uma história, não contamos? 

Pois bem, o que faz de mim merecedor de vaga na universidade ou de cargo público mais do que um branco com as mesmas condições que eu ou com menos condições que eu? Nada. Não há resposta que seja satisfatória a esta pergunta que não caia na malandragem ou se perca no racialismo dos dias de hoje. Incapazes de resolvermos problemas sociais seculares, declaramos black is beautiful e dá-lhe cotas para tudo. Se é para se dar bem na vida, agora todos declaram ter um pé na África - ver matéria


Eleitoreiramente o governo aplica a seu bel prazer políticas afirmativas que jogarão ao longo dos anos os brancos pobres ou da baixa classe média no limbo da sociedade. Ao descalabro que foi a escravidão o estado brasileiro responde com revanchismo rasteiro, com a chancela de quem deveria patrocinar a integração racial. ONGs malandramente clamam falar pelas minorias raciais como se fossemos grupo homogêneo e uníssono. Não somos. Pior: nem minoria somos, dada nossa miscigenação. Mas e daí? Aguardem até o dia que teremos cotas para os brancos excluídos. Quem viver, verá! 
Aguardem até o dia que teremos cotas para os brancos excluídos. Quem viver, verá! 

Posso ser menos reticente a cotas sociais na admissão universitária pública e particular. Embora o ensino seja uma porcaria da USP à Gama Filho, posso dar meu braço a torcer e aderir a política de inclusão de pobres, independente de cor ou raça. Quanto a cotas para entrada no funcionalismo público, além de atestar que se trata de escarnio ridículo, afirmo - quem sabe faça texto sobre isso - que na verdade precisamos demitir funcionários públicos e não contratar mais deles. Precisamos é de iniciativa privada nesse país, precisamos de menos burocracia e mais incentivos. Como disse, assunto para um próximo texto. 

Mas do que você sabe, seu filhinho de papai (estou mais para filhinho de mamãe)?
Quem você pensa que é para sair por ai criticando quem faz alguma coisa se você não faz nada?, é o que me dizem. O que você sabe sobre o racismo e as dificuldades de ser negro nesse país, berra o branquelo amigo povo (branquelo pode e não é racismo, viu). 
Bom, eu sou eu. Resposta vaga, sei. Não tenho outra a oferecer. Talvez tenha. Jamais quis ser "alguém" para poder algo. Jamais precisei ser "alguém" para dizer o que penso. E ao dizer, escolho o modo que achar melhor. Se ofensivo, paciência. Se errado, sinto muito. Mudar para agradar a patrulha? Não vou. E não vou por ser um preto metido a besta, contrário a cotas para qualquer coisa que não precisa ser salvo nem por brancos com sentido tardio (e doentio) de culpa, nem por ninguém. Tenho uma resposta melhor agora: sou o filho da dona Valéria. 
Exato

E digo não as cotas! 



16 comentários:

Luna Rosa Inlladrys disse...

Muito bom, eu sou mestiça de indio (linhagem sabe-se lá de quando) com alguma coisa que ninguém da familia sabe, meu marido é branco descendente de alemão e italiano. Minha filha nasceu a copia do pai e me questiono como vai ser no futuro pra ela.

Espero que isso um dia mude, é triste ver e ouvir nego falando - vou estudar pra que? Minha cota já me ajudou um bocado é só chutar o resto.


Sim eu já escutei isso numa prova...

Falcão Peregrino disse...

Olá...,
Gostei do texto e do blog.
Vou seguir.
Visite o meu, se achar interessante, siga!
Abs!

Gabriel Amaral disse...

O futuro da sua filha, com a devida educação será brilhante. Não se preocupe, Luna.

O cenário brasileiro que notamos mudará, não sei se para melhor nos próximos anos, mas mudará. Com um pouquinho de força e razão de nossa parte, quem sabe dê certo. Venha sempre a este espaço.

Um abraço.

Gabriel Amaral disse...

Marcos, obrigado pelas palavras amistosas e elogiosas. Seguirei sim, só questão de olhá-lo com tempo. Venha sempre que desejar a este blog.

Um abraço.

Anônimo disse...

QUE PARADA E ESSA DE CONTRA AS COTAS MANO TA MALUCO.OS BRANCOS A SOLAM NOSSA RAÇA INDIFERENÇA EM TUDO OBRANCO NÃO NASCE RICO MAIS NASCE LIVRE DE QUALQUER PRECONCEITO BABACA SE NÃO TE VER COTA NÃO TEM NEGROS E ASSIM QUE NOSSA RAÇA SE ESTABILIZAR NAS FACULDADES A COTA VAI ACABAR NORMALMENTE,SO OS BRANCOS RICOS SUSTENTADOS PELOS PAIS COM SENSO DE MERECIMENTO DESMERICIDO QUE PENSAM DE FORMA AO CONTRARIO

Gabriel Amaral disse...

Isso foi um comentário ou uma tentativa de suicídio?

Anônimo disse...

Ótimo texto. É certo que nem todo branco nasce rico, mas "supondo que um negro apresente um curriculo igual ao de seu concorrente branco. Quem será o escolhido?" Esse é o argumento que sempre utilizam na defesa das cotas. Mas me diga, essa cota ajuda em que então, já que o problema é pós-faculdade? A própria mídia separa brancos e negros, em programas como Esquenta, novelas, etc e depois querem defender as cotas. Será mesmo que a facilidade de passar vai garantir uma profissão pra essas pessoas? Mais uma vez o Estado dando o famoso "jeitinho". Até entendo que ainda exista preconceito, mas essa não é a solução. Ser negro é uma coisa, ser pobre é outra e nem sempre andam juntas. Defendo cota apenas para baixa renda, pq não ter dinheiro nessa pais é, sem dúvidas, um impecílio gigantesco.

Gabriel Amaral disse...

Obrigado por ter lido e pelo elogio ao texto, meu caro anônimo. No mais, pensamos o mesmo e é bom saber que não estou só. Um abraço.

Laura disse...

Olá,

Pra falar a verdade, eu concordo com sua ideia (ser contra cotas raciais), mas discordo do seu argumento. Usar um caso particular (no caso, o seu e da sua mãe) não é um argumento válido.

Se for assim, eu posso usar um caso particular para provar qualquer coisa que eu queira. Ex.: minha mãe trata os negros muito bem, todo mundo que eu conheço também. Então não existe mais preconceito racial no brasil. O que é obviamente errado.

Eu concordo plenamente que cor de pele não interfere em concurso público, mas usar um caso particular pra generalizar não é argumento.

Gabriel Amaral disse...

Oi, Laura! Desculpe a demora na resposta.
Usar meu caso em particular para explanar sobre uma questão não foi o que fiz, menos ainda o que pretendi fazer, até por que envolvo nas minhas linhas a delicada mancha do racismo e do racialismo em nossa sociedade. Sou claro ao dizer que: "Minha mãe, minha irmã e eu não somos a regra e nem podemos ser tomados como padrão dos negros, pardos e mestiços do Brasil. Mas contamos uma história, não contamos?"
Contar uma história de jeito algum é fazer dela norte único de análise. Longe de ter sido o que fiz, espero que numa próxima visita sua ao blog estejamos em sintonia não só em ideia, como também em metodologias de aplicação da ideia.
Venha sempre!

Daniel Duque disse...

Não sei se já aconteceu com você, Gabriel, mas não faltam exemplos de policiais revistando arbitrariamente negros por questão puramente racial. Houve aquela história da criança adotada de pais brancos (e ricos) que foram comprar um carro e o vendedor da concessionária tentou expulsar o garoto.

É impossível não afirmar que o negro, enquanto sofre preconceito, está em desvantagem social em relação ao branco. Isso é reforçado pela mídia e etc... Está já há muito comprovado que a mobilidade social entre brancos é muito maior do que entre negros, isso mostra que há algo estrutural - para além da renda - sobre aqueles de cor negra que os dificulta de ascender socialmente. Ações afirmativas são tentativas por parte do governo de reverter esse quadro.

Gabriel Amaral disse...

Arbitrariamente não. Já fui revistado, mas foi coisa tranquila. Por que foi assim comigo, não sei dizer. O problema racial existe, não neguei isso. Nem poderia fazê-lo, doido não sou. Mais do que isso, reconheço a boçalidade humana. Ela vem de negros e brancos, pardos e asiáticos.

O significado que quero transmitir com o texto que fiz e com os comentários que faço é o de que precisamos superar a questão racial, e não será através de politicas de Estado enviesadas que o faremos.

É preciso, não há duvidas, fazer com que a mobilidade social exista para além de cores e raças, para além de classes sociais. Da forma como está posta a questão, por conta de um passado inglório, trata-se da questão dos negros, sem lhes dar a devida desforra, penso eu, e se esquece das nossas outras misérias e dos nossos outros miseráveis. Precisamos nos afirmar como um país sério. De ações afirmativas, não precisamos.

Daniel Duque disse...

Gabriel, entendo seu ponto de vista, mas creio que o primeiro passo para um país se afirmar sério é colocar em pauta seus problemas estruturais - e acredito que o racismo e suas marcas mais profundas nas desigualdades raciais estejam entre elas.

As ações afirmativas podem não ser a melhor resposta a esses problemas para você, mas são uma resposta, coisa que esse país não costumava dar até antes de sua democracia.

Unknown disse...

Texto impecável!! parabéns!!

Anônimo disse...

Quando fiz vestibular, há mais de 20 anos, não registrei em lugar algum a cor de minha pele, cabelo ou olhos. Não entreguei fotos, não fiz entrevistas e nem passei por qualquer tipo de avaliação que verificasse a minha "raça". E apenas por mérito próprio, porque estudei e me dediquei, passei no vestibular.
Adorei seu texto! Se você me permite, vou divulgá-lo. Parabéns!

Anônimo disse...

Felicito o Gabriel Amaral pela sua lucidez e coragem.
Se eu fosse negro, também estaria empunhando cartaz contra as cotas, as quais, acima de tudo, é só pensar com isenção, são (I) ofensivas aos pretos na sua dimensão de seres em situação, pois incontornavelmente contêm a mensagem subliminar de que estes, sem elas, jamais seriam suficientemente competentes (a maioria das pessoas possivelmente lerá “inteligentes”) para enfrentar um sistema baseado em mérito, (II) inconstitucionais (‘tá lá, na Carta; é só ler...), (III) a versão social do ovo da serpente, pela ameaça latente permanente de fornir a sociedade como um todo de pessoas sem o valor transcendental do mérito e colocá-las na via de acesso aos postos estruturantes do grupo maior; e (IV) uma “engenharia” que, em final, só beneficia realmente o político canalha (Opa! Pleonasmo?), independentemente de sua etnia ou de sua mistura, que visa exclusivamente à resposta eleitoral que venha a ser produzida pelos aproveitadores e pelos mais crédulos.
Sou, no entanto, francamente simpático a cotas para os estudantes gerados pelas lamentáveis escolas públicas brasileiras, independentemente de serem esses brancos, negros, furta-cores, verdes, fúcsias, magentas etc; isso, contudo, somente enquanto Pindorama não estiver conseguindo sucesso na conquista de um modelo de ensino público capaz de competir de igual para igual com o privado. Para o pilan..., digo, político sem caráter (desculpe-me essa nova derrapagem pleonástica), porém, o nicho dos negros é, quando menos pela facilidade de identificá-lo e organizá-lo, objeto muito mais fácil de empacotar.
Uma pena, mas essa tem cheiro, orelha, pelagem, fungado e rabo de mais uma ferramenta para minar um eventual esforço do nosso País na conquista de efetividade na sua capacidade competitiva internacional. Além dos puramente eleitorais, que outros motivos inconfessáveis estariam nos corações e mentes de seus idealizadores, mentores, gestores e (aparentemente ingênuos) defensores espontâneos?
Abraço.